Airas Peres Vuitorom

Rubrica:

Esta outra cantiga é de mal dizer dos que derom os castelos como nom deviam a 'l-rei Dom Afonso.


  A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit'anda,
 bem é que a mantenhamos, pois que no-l'o Papa manda.
  
   Nom tem Sueiro Bezerra que tort'é em vender Monsanto,
ca diz que nunca Deus diss[e] a Sam Pedro mais de tanto:
5- Quem tu legares em terra erit ligatum in celo;
 por en diz ca nom é torto de vender hom'o castelo.
  
Por en diz que nom fez torto o que vendeu Marialva,
 ca lhe diss'o arcebispo um vesso per que se salva:
- Estote fortes in bello et pugnate cum serpente;
10por en diz que nom é torto quem faz traiçom [e] mente.
  
  O que vendeu Leirea muito tem que fez dereito,
ca fez mandado do Papa e confirmou-lh'o Esleito:
- Super istud caput meum et super ista mea capa,
dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa.
  
 15O que vendeu Faria, per remiir seus pecados,
se mais tevesse mais daria; e disserom dous prelados:
 - Tu autem, Dominem, dimitte aquel que se confonde;
bem esmolou em sa vida quem deu Santarém ao Conde.
  
Ofereceu Martim Dias aa cruz, que os confonde,
   20Covilhã, e Pero Dias, Sortelha; e diss'o Conde:
- Centuplum accipiatis de mão do Padre Santo.
 Diz Fernam Dias: - Bem m'ést[e], porque oferi Monsanto.
  
Ofereceu Trancos', ao Conde, Roi Bezerro;
 falou entom Dom Soeiro, per sacar seu filho d'erro:
 25- Non potest filia mea sine patre suo facere quidquam:
salvos som os traedores, pois bem isopados ficam!
  
O que ofereceu Sintra fez come bom cavaleiro,
  e disso-lhi o legado log'um vesso do Salteiro:
 - Sagitte potentis acute - e foi i bem acordado:
30melhor é de seer traedor ca morrer escomungado.
  
E quando o Conde ao castelo chegou de Celorico,
 Pachec'entom o cuitelo tirou; e disse-lh'um bispo:
 - Mitte gladium in vagina, com el nom nos empeescas.
Diz Pacheco: - Alhur, Conde, peede u vos digam: Crescas!
  
 35Maldisse Dom Airas Soga a ũa velha noutro dia;
 disse-lhi Pero Soares um vesso per clerezia:
- Non vetula bombatricom scandit confusio ficum;
nom foi Soeiro Bezerra alcaide de Celorico.
  
Salvos som os traedores quantos os castelos derom;
40mostrarom-lhi em escrito [que foi bem quanto fezerom]
 super ignem eternum et divinitatis opem:
salvo é quem trae castelo a preito que o isopem!



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Nota geral:

Uma das mais conhecidas cantigas do Cancioneiro satírico, violento manifesto contra os que permitiram a deposição de D. Sancho II, de quem Vuitorom foi um ardente defensor: por um lado os alcaides dos castelos referidos ao longo da composição (particularmente da Beira), que, como indica a rubrica, os entregaram ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso III, quebrando assim, para o trovador, o juramento de lealdade para com o seu legítimo senhor e rei; por outro lado, e muito claramente, os altos dignatários da Igreja que imediatamente legitimavam a traição, quando não a incitavam (e que desempenharam, de facto, um importante papel no conflito). É um verdadeiro achado a utilização que é feita das citações bíblicas e outras frases em latim, seguidas da "tradução" em bom português. Note-se que a cantiga abre, antes da estrofe final, uma exceção para o leal alcaide de Celorico da Beira, que surge como um verdadeiro herói neste mar de indignidades.
A cantiga deve ter sido composta no final da guerra civil que opôs os partidários dos dois irmãos, ou seja, por volta de 1247, ou um pouco antes, provavelmente no círculo do Infante Afonso de Castela (o futuro Afonso X), que veio efetivamente em socorro do infeliz rei (entrando com a suas tropas pela Beira). Nos cancioneiros, duas outras cantigas abordam o mesmo tema, e terão sido compostas no mesmo círculo (até porque nenhuma cantiga nos chegou do lado oposto).
A composição começou por ser editada (Braga, Nunes) em versos curtos de sete sílabas, que é a disposição dos manuscritos. Carolina Michaelis1 dá-lhe a forma atual de versos longos de quinze sílabas, mas mantém um espaço ao meio do verso (correspondente à cesura), editando a composição em duas colunas. Será talvez uma outra boa hipótese de edição.

Referências

1 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de, "Em volta de Sancho II", in Lusitânia, II (1924-1925).



Nota geral


Descrição

Cantiga de Escárnio e maldizer
Mestria
Cobras singulares
(Saber mais)


Fontes manuscritas

B 1477, V 1088

Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B 1477

Cancioneiro da Vaticana - V 1088


Versões musicais

Originais

Desconhecidas

Contrafactum

Desconhecidas

Composição/Recriação moderna

Desconhecidas