João Peres de Aboim


Disserom-mi ora de vós ũa rem,
meu amigo, de que hei gram pesar,
mais eu mi o cuido mui bem melhorar,
se eu poder, e poderei mui bem:
5       ca o poder, que sempre houvi, m'hei,
       e eu vos fiz e [eu] vos desfarei.
  
Dizem-mi que filhastes senhor tal
per que vos cuidastes de mim partir,
e bem vos é, se vos a bem sair,
10mais deste bem farei-vos end'eu mal:
       ca o poder, que sempre houvi, m'hei,
       e eu vos fiz e [eu] vos desfarei.
  
Senhor filhastes, com' dizer
a meu pesar, e perderedes i,
15se eu poder, e poderei assi
como fiz sempr'e posso-me poder:
       ca o poder, que eu sempre ouvi, m'hei,
       e eu vos fiz e [eu] vos desfarei.
  
E, pois vos eu tornar qual vos achei,
 20pesar-mi-á en, mais pero vingar-m'-ei.



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Nota geral:

Interessante cantiga de amigo, que nos faz ouvir uma voz feminina em clara afirmação de poder. Se o motivo próximo para a fúria da donzela parece ser o facto de o seu amigo a ter trocado por outra (como é dito numa cantiga anterior), nesta composição não há lamentos, mas a reivindicação de um poder (social) muito explicitamente enunciado no refrão: eu vos fiz e eu vos desfarei. Ou seja, esta voz feminina lembra ao amigo que, se ele é quem é, a ela o deve, podendo utilizar o poder que tinha e sabe que continua a ter para o remeter à sua insignificância inicial. E embora tal coisa lhe pese (como diz na finda), será uma vingança apetecida.
Independentemente de sabermos se João Peres de Aboim alude ou não aqui a um contexto concreto, a cantiga mostra-nos claramente duas coisas: 1) que o poder feminino podia ser uma realidade nas sociedades medievais ibéricas, sobretudo nas mulheres da aristocracia que sabiam "ler" a rede social em que estavam inseridas; 2) que a figura da donzela nas cantigas de amigo é essencialmente a de uma personagem estilizada, que os trovadores adaptam às mais diversas circunstâncias (incluindo ao teatro do real).



Nota geral


Descrição

Cantiga de Amigo
Refrão
Cobras singulares
Finda
(Saber mais)


Fontes manuscritas

B 670, V 273

Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B 670

Cancioneiro da Vaticana - V 273


Versões musicais

Originais

Desconhecidas

Contrafactum

Desconhecidas

Composição/Recriação moderna

Desconhecidas