Nota geral: Esta magnífica alba de Nuno Fernandes Torneol é certamente uma das mais conhecidas e antologiadas cantigas de amigo de toda a lírica galego-portuguesa, e com inteira justiça. Como acontece com todas as cantigas que jogam com a dimensão simbólica, nomeadamente dos elementos naturais a que fazem apelo (no caso, aves, ramos, fontes), esta é uma composição de sentido aberto, suscetível de diversas interpretações (que não deixaram de ser feitas, ao longo da sua história crítica). Em sentido estrito, o seu resumo não é difícil: a moça acorda de manhã o seu amigo, que dorme ainda (pede-lhe para se levantar), enquanto recorda como todas as aves do mundo cantavam de amor, sentindo-se ela imensamente alegre. Era o amor entre os dois o que as aves comentavam no seu canto. Mas o amigo cortou os ramos em que elas pousavam e secou as fontes onde bebiam. Se a cantiga nada mais nos diz, duas linhas de leitura parecem, desde logo, evidentes: a primeira, a identificação que se pode estabelecer entre as aves que cantam e a moça (que canta), e que é potenciada pela ambiguidade do sujeito do refrão (as aves cantavam a alegria da moça, ou a alegria da moça é um eco do canto de amor das aves); a segunda linha de leitura também parece evidente: em algum momento o amigo perturbou o curso natural do amor, ou seja, a moça alude, nas quatro estrofes finais (como quatro são as estrofes iniciais), a uma ruptura amorosa. Um primeiro elemento menos evidente é o facto de o refrão, cujo tempo é o presente do indicativo, se manter (como lhe compete) inalterado ao longo de toda a cantiga. Esta reafirmação de uma alegria presente, mesmo nas estrofes finais, disfóricas, da cantiga, tem sido interpretada duas formas distintas: 1) o presente da moça é o de um alegre despertar, depois de uma noite de amor que se sucedeu a uma ruptura, já ultrapassada (recordando esse tempo melancólico, a moça volta agora a estar alegre); 2) o presente da moça é o tempo da ruptura definitiva, após uma noite que apenas a confirmou - neste caso, o presente do refrão nas estrofes finais da cantiga sublinharia, dramaticamente, um tempo feliz recordado na primeira parte e que não voltará mais (como alguém que insensatamente quer continuar a acreditar naquilo que sente terminado). De resto, e sem com isto tomarmos partido por qualquer uma das duas interpretações (tarefa que deixamos ao leitor), dois aspetos, de certa forma, complementares, merecem ainda ser sublinhados. Um deles é a referência às "manhãs frias" (o presente explícito da moça e do amigo), referência pouco habitual neste tipo de cantigas de amigo, onde o cenário é geralmente mais idílico e primaveril. De resto, estas "manhãs frias", juntamente com o fim do canto das aves, as árvores despidas de ramos e as fontes secas, desenham-nos um cenário de final do verão ou de inícios de outono, simbolicamente muito paralelo ao tempo melancólico de uma ruptura (passada ou presente). Seja qual for, enfim, a interpretação que dermos à cantiga, a arte de Nuno Fernandes Torneol é plenamente confirmada por esta notável capacidade de aliar o mais elementar ao mais complexo, ou de condensar, através das formas mais simples e tradicionais, níveis sucessivos de leitura.
|