Nota geral: Cantiga de amor que se tornou célebre por ter estado na origem da chamada "questão da ama", jocoso debate que animou os círculos trovadorescos em meados do século XIII. Na verdade, e tomando como ponto de partida o heterodoxo elogio que D. João Soares Coelho nela faz a uma "ama" (figura feminina em tudo afastada da imagem cortês da senhor), vários foram os trovadores e jograis que comentaram jocosamente a composição, estranhando a escolha da destinatária, que entendem como uma tradicional e popular ama de leite. A este coletivo ataque respondeu João Soares, tanto em cantigas como em tenções, reforçando o elogio da ama. Na verdade, o sentido desta composição de João Soares e de toda a discussão que se segue poderá ser um pouco mais complexo do que aquele que resulta desta primeira leitura. Ângela Correia, por exemplo, sugeriu, já em 19961, que o termo "ama" seria usado de forma equívoca e esconderia, na verdade, uma identidade concreta, sugerindo, a partir de um dos sentidos do termo latino amma (mocho), que a cantiga poderia remeter para uma linhagem que usou esse apelido (num artigo retomado e muito alargado em 20162). Contestando esta hipótese, posteriormente Vicenç Beltran avançou com uma nova interpretação3, segundo a qual esta cantiga de João Soares seria efetivamente dirigida a uma ama de leite, mas de um infante ou infanta real, cargo muitas vezes desempenhado por damas da nobreza. A ser assim, a composição, ao mesmo tempo que faria o elogio da jovem e nobre ama, seria uma forma indireta de celebrar esse mesmo nascimento. Quanto às restantes cantigas, elas inserir-se-iam neste mesmo contexto festivo de celebração, prolongando-a pelo riso. Já quanto à identidade deste infante ou infanta (e também da ama) a questão poderá ser um pouco mais polémica. No mesmo estudo em que analisa demoradamente o caso, Vicenç Beltran defende que a "questão da ama" celebraria, de facto, o nascimento de D. Dinis. Nestas circunstâncias, o ciclo dataria de 1261, sendo a "ama" no centro da polémica D. Maria Miguéis (a dona de Guimarães que Frei António Brandão indica ter sido a ama de leite do futuro monarca). Embora aliciante, esta hipótese levanta, no entanto, problemas vários. Sendo impossível abordá-los em detalhe nesta breve nota, digamos apenas que, para além de esta datação parecer um pouco tardia em relação ao que pensamos ter sido a cronologia de alguns dos intervenientes no "debate", as claras referências a localidades de Castela que encontramos na cantiga de Fernão Garcia Esgaravunha (que foi, ao que tudo indica, o primeiro "comentário" jocoso a este elogio da ama) parecem indicar que terá sido na corte castelhana de Afonso X (rei ou infante) que ele se teria processado. De resto, o próprio João Soares Coelho, ao utilizar, por duas vezes, a expressão feminina mui fremosas pastores na tenção que mantém com Juião Bolseiro, parece dar a entender que a criança ao cuidado da "ama" seria, eventualmente, não um infante, mas sim uma infanta real. Seja como for, esta recente sugestão de Vicenç Beltran, mesmo que venha a ser matizada nos seus detalhes, parece ser, na sua generalidade, um bom ponto de partida para um entendimento mais cabal da "questão da ama".
Referências 1 Correia, Ângela (1996), "O outro nome da ama. Uma polémica suscitada pelo trovador Joam Soares Coelho", in Colóquio/Letras, 142. Aceder à página Web
2 Correia, Ângela (2016), Ama. A importância de um nome no conhecimento sobre os trovadores medievais galego-portugueses, Bibliotrónica Portuguesa. Aceder à página Web
3 Beltran, Vicenç (1998), “Tipos e temas trovadorescos, XV. Johan Soarez Coelho y el ama de don Denis”, Bulletin of Hispanic Studies, 75. Aceder à página Web
|