Afonso Mendes de Besteiros


 O arrais de Roi Garcia,
que em Leirea tragia,
       desseinou-o;
e pois veo outro dia
5       e enlinhou-o.
  
Nom vos foi el de mal sem:
serviu-se del mui[to] bem,
       desseinou-o;
e pois veo a Santarém
10       e enlinhou-o.
  
Nom vos foi el mui mesquinho:
per como diz Cogominho,
       desseinou-o;
e pois morreu Dom Martinho,
15       enlinhou-o.
  
Ainda vos eu mais direi:
per quant'eu del vej'e sei,
       desseinou-o;
e pois veo a cas del-rei,
20       enlinhou-o.



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Nota geral:

Cantiga de interpretação muito difícil, tanto quanto é difícil a fixação do seu texto. A composição dirigir-se-á a Rui Garcia de Paiva, conselheiro de D. Afonso III, parece estabelecer um contraste entre o seu comportamento na corte e fora dela, e é certamente equívoca. A ser este o visado, sabemos também que, à sua morte, em 1276, a sua esposa teve de satisfazer dívidas resultantes de roubos e malfeitorias várias (Oliveira: 2002-20031). Quanto a tudo o resto, são mais as dúvidas que as certezas.
Os dois problemas maiores da composição residem, por um lado, no significado a dar ao termo "arrais" e, por outro lado, na fixação e interpretação dos verbos que surgem no refrão, e que não são claros. De facto, e centrando-nos neste último aspeto, o verbo do primeiro verso do refrão, desseinar, poderá vir da arte da falcoaria, onde significava "tirar a gordura supérfula às aves de caça" (nomeadamente passeando com elas à noite); em sentido figurado significaria também "amansar génios bravos". Foi a partir deste entendimento, explicitado por D. Carolina Michaelis2, que Rodrigues Lapa3 leu a cantiga, interpretando-a como uma sátira às relações homossexuais que Rui Garcia manteria com um seu arrais (o capitão de uma sua embarcação, que é um dos sentidos possíveis para este termo). Seguindo esta ordem de ideias, Lapa optou também por corrigir o último verbo do refrão (nos mss. claramente enlinho-o), para o antónimo enseinou-o (engordou-o).
Na verdade, não é seguro que o termo "arrais" tenha aqui o significado tradicionalmente proposto (ou, pelo menos, apenas esse). Tendo em conta esta dúvida, Resende de Oliveira, no trabalho acima citado, sugeriu que se deveria antes entendê-lo como um tecido bordado (proveniente de Arras), pelo que, na sua interpretação, a cantiga aludiria essencialmente, ainda que em forma de equívoco, ao gibão de Rui Garcia, e integrar-se-ia no tradicional tema da pelintrice dos infanções (no resto, mantendo a referido correção do segundo verbo do refrão).
Já mais recentemente, Déborah González, num estudo cuidado da cantiga4, acrescentou mais alguns dados que tendem a reforçar esta hipótese de o trovador se estar a referir ao tecido do gibão de Rui Garcia, a partir de outros sentidos possíveis para os dois verbos do refrão (no caso sem necessidade de se alterar o segundo): desseinar significava também lavar nódoas nos tecidos, e enlinhar significaria também "remendar, passajar com linha". Na sua interpretação, em parte coincidente com a de Resende de Oliveira, tratar-se-ia, pois, de uma zombaria às roupas velhas e mal tratadas com que Rui Garcia se apresentaria na corte, por penúria ou mesmo por avareza.
Pela nossa parte, considerando esta uma interpretação consistente, não descartamos a hipótese de a cantiga poder ter um duplo sentido, até porque o termo "arrais" significava ainda "falcão da espada" (a parte recurva do seu punho), valor que encontramos atestado em textos da época5..
Seja como for, as circunstâncias em que Rui Garcia de Paiva desseinava ou enlinhava o seu arrais são assaz nebulosas, não sendo mesmo impossível que a cantiga comportasse igualmente uma dimensão política cujo desenho exato nos escapa, mas que poderá eventualmente relacionar-se com as tensões ainda resultantes da guerra civil que levou o Bolonhês ao trono português.

Referências

1 Oliveira, António Resende de (2002-2003), “Rui Garcia de Paiva no escárnio Galego-Português”, Revista Portuguesa de História, t. XXXVI, vol. I .

2 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (1910), "Mestre Giraldo e os seus tratados de Alveitaria e Cetraria", in Revista Lusitana, XIII , pp. 376-389.
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3 Lapa, Manuel Rodrigues (1970), Cantigas d´Escarnho e de Maldizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, 2ª Edição, Vigo, Editorial Galaxia.

4 González, Déborah (2014), "O arraiz de Roi Garcia... desseino-o et enlinho-o. Une nouvelle lecture du texte satirique B1560 d´Afonso Mendez de Besteiros", in Revue des Langues Romanes 118 / 1.
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5 Seoane, Ernesto González (coord.), Dicionario de dicionarios do galego medieval. Corpus lexicográfico medieval de língua galega.
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Nota geral


Descrição

Cantiga de Escárnio e maldizer
Refrão
Cobras singulares
(Saber mais)


Fontes manuscritas

B 1560

Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B 1560


Versões musicais

Originais

Desconhecidas

Contrafactum

Desconhecidas

Composição/Recriação moderna

Desconhecidas