| | | Martim Soares |
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 | | | De tal guisa me vem gram mal |
| | | que nunca de tal guisa vi |
 | | | viir a home, pois nasci; |
| | | e direi-vos ora de qual |
 | 5 | | guisa, se vos prouguer, me vem: |
| | | vem-me mal porque quero bem |
 | | | mia senhor e mia natural, |
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 | | | que am'eu mais ca mi nem al; |
 | | | e tenho que hei dereit'i |
| 10 | | d'amar tal senhor mais ca mi |
 | | | – e seu torto x'é, se me fal; |
 | | | ca eu nom devi'a perder |
| | | por mui gram dereito fazer; |
| | | mais a mim dereito nom val. |
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| 15 | | E pois dereito nem senhor |
| | | nom me val i, e que farei? |
 | | | Quem me conselho der, terrei |
| | | que muit'é bom conselhador; |
| | | ca ela nom mi o quer i dar, |
 | 20 | | nem m'ar poss'eu dela quitar. |
| | | E qual conselh'é aqui melhor? |
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 | | | Esforçar-me e perder pavor |
| | | o melhor conselh'é que sei, |
 | | | e em lhe dizer qual tort'hei |
 | 25 | | e nom lho negar, pois i for; |
 | | | e ela faça como vir, |
 | | | de me matar ou me guarir, |
 | | | e haverei de qual quer sabor. |
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Nota geral: O trovador afirma que o seu mal, maior do que qualquer outro, tem origem na sua senhora e sua natural, que ama e não lhe quer valer. Na verdade, é a partir do termo natural que Martim Soares constrói esta sua cantiga. Trata-se de um termo tipicamente medieval, que se aplicava aos herdeiros de um mesmo convento (que dele recebiam uma renda); implicando uma relação de proximidade social e geográfica, poder-se-ia talvez traduzir aqui por “patrícia” (como faz Carolina Michaëlis1). Note-se, no entanto, que o trovador joga, ao longo da composição, com as implicações jurídicas do termo, nomeadamente o dever de amor para com um "natural" - como acontece logo na 2ª estrofe, no apelo que faz ao seu "direito" e na referência ao "crime" que ela faria se não lhe valesse. Também na última estrofe, a solução que imagina para o seu caso - ganhar coragem e expor-lhe claramente a injustiça de que se sente vítima - faz apelo a este mesmo contexto jurídico. Não sabemos, na verdade, se o trovador usa o termo em sentido literal, aludindo a uma sua parente em concreto, ou apenas em sentido metafórico. Sendo a primeira hipótese bastante possível, praticamente impossível será apurarmos a identidade desta senhora.
Referências 1 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (1990), Cancioneiro da Ajuda, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda (reimpressão da edição de Halle, 1904) .
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